domingo, 10 de abril de 2011

Entrepassos


Entrepassos
Igor Rossoni

Fincado em planta de pés, olhar precipita-se em direção ao pequeno volume disposto sobre a cama – metodicamente – alinhavada. Deita olhos, e as primeiras letras penetram da boca ao quas’esquecimento “No dia seguinte ninguém morreu”.
Volta a si; e percebo que – aos poucos – ganho dimensão que não dispusera sentido enquanto o outro me observava. Deixo a posição de resguardo – a sombra dos pés inda lá, no frio assoalho – e dou-me em movimento, entreaberto de janela e vidraçarias. Ele diria que... talvez, o fora iluminasse o descolorido daquelas paredes, encerradas em velho quarto de habitação. E uma brisa lamberia de breve a presença viciada de estar ali, entre poucos móveis e pequenas recordações. Quem sabe, um ou outro sentido consequente pudesse antever de minhas narinas farejantes e aceleradas. O pulso, no exato cardíaco de meu olhar, agora disperso sobre a cama: lençóis brancos; silenciosamente brancos. Reações breves, passageiras. A decisão.
Entanto, calado, e à ausência de ação, fez-se tempestades e quase deserções. A verdade é que da cama à fronteira da janela – pouco ou nada me sucedeu. Espera e só. Ele lá, pensativo – olhos em mim observantes. Eu cá, no estreito de entre-passos, vasculhar recordações, decantos não relatados nem olvidados. Velha mancha disforme compõe a tessitura da parede, à esquerda. Não olho para ela. Fosse – se fosse – algo entre primeiros augúrios da manhã. De fato, o sol desescurecia de vez e um visgo de farol banhou-me perfil de rosto: batiam-me n’alma e dela d’encontro a meus pensamentos mais descuidados e enfraquecidos.
Deve ter sido neste exato, a intervenção – dele – premeditada. Mas não. Virei-me e sorri-lhe pequeno espasmo de quase-dor diante do fato. Éramos dois. No entre, um desejo de dizer o que fosse-que-fosse, caso as palavras novamente desprendessem-lhe da garganta ou mesmo se lhas fossem concedidas.
... Então, frente ao ranger do aroma de fora nos tordos da vidraça, a claridade impregna, por contorno, o limbo da parede oposta: esguio de claro e penumbra irrompem-lhe das costas. Imagina-se nu, pés informes roçando – pesado – o frio do passeio que há anos lhe sustenta. Espaço viciado, por exíguo: cadeira e papéis sobre mesa d’encosto; varal e vestes em desalinho; criado; por sobre, vidro d’água entre única caneca de alumínio e último gesto-de; pó por cantos e tetos; as recordações esquecidas. Velho quarto d’Hotel Hollywood.
Estou aqui, neste quarto, há milênios. Se quero sair e ganhar, no fora, a manhã que irradia, penso: o que ele diria se eu deixasse posição de resguardo e... porta a fora? Ao certo, viria em meu auxílio, palavra-por-palavra, a fim de suster minha intempestiva atitude. Então, pura-dó, deixo-me fincar e dissipo-me o pensamento que julga conhecer e delatar.
Nu, pensa em liberdade. Vinca deixar para trás distâncias de reclusão. O mesmo quarto, os mesmos passos, o sulco abismal construído nesses silêncios d’espera entre arrumação perfectível de cama e o férreo ranger do vento, no fora. É feliz, embora não se permita transparecer.
Corro e m’escancaro frente-a-frente – espelho – em cacos de mim. – Assassino! Registro a voz que m’encara. A dele quieta; minha indignada reação. Olho-me ao redor, em muitos, aqui e acolá e, silenciosamente: onde não está a prisão?!.
Súbito, verdade era só e única. Tudo poderia ter sido diferente se – naquela manhã – Januário tivesse não pensado em sair de casa e dobrar – no velho aposento – a primeira esquina. O dia estava às pressas e nem teve tempo de esperar pelo noticiário. Foi no relance e no repentino, do sonho ao espelho e de lá...
Ninguém morreu, no dia seguinte.
06/abril/2001

quarta-feira, 16 de março de 2011

Sob-lentes: mínimo ensaio incidental sobre ações fotográficas
Igor Rossoni

Os olhos, atônitos, adiantam-se diante dessas fotos. Ora estrelam, outras emudecem. Entanto, o exercício do focá-las enlaça ­ – em si –­ o de olhar e imagens reveladas. Tudo vai além de exatidão de maquinaria e respiro. O coração decanta enquanto dedos tateiam disposição  elementar. Olhares, em instações involuntárias, buscam aconchego no à frente  e – num só atino – eternizam a mobilidade. Deste modo, o registro é mais que impregnação de volumes e tonalidades: é algo limítrofe, precisão entre ser e desejar; luzir e perfumarias em queda; recordo e comunhão com o imponderável.
Destarte, adiante da curvatura d’olhar, meras realidades fremem copuladas –  tempestivamente   em imagens consanguíneas:  volância  esplendida no encontro do si-mesmo com a poesia que delas irradia. Assim, não é mais a imagem que se prende ao instante, mas a coisa que a antecede, pois – pela negação do próprio olho – consente-se capturar.  No movimento, o pulso do sucesso supera a referencialidade do estar, e  dela fisga apenas o insinuado como ânima  de sensações e vivência d’eternidade que – súbito –  ali volve corpo.
Por isso, talvez, o trabalho de captura ultrapasse o mero ato de registro. É vida a  engendrar; ao capturar-se ­– de dentro de si – a aura do acontecimento. Sugere-se  salutar: a coisa ali, à espera de algo que não está. O olho lá, desenraizado da emoção circundante. Juntos, processam a transformação de mero registro para singularização de movimentos por jogos que, apenas em aparência, fixam determinada paisagem. Deste modo, todo e qualquer estado-de-estar se desilude, e a reconciliação resultante se vê diante de construção daquilo que a referencialidade arruinou: o sentido em vitalizar  e conferir humanidade para as coisas-em-si.
Tempestades e florações.
Então nos dispomos a observá-las, as fotos. E percorremos que – por mais lonjuras –  falam de coisas e falam de nós, e de outros que são outros nós; velhas terras e minguadas rotinas; estradas e recordações de familiaridades: encantos e desencantos diante dos olhos.
Sobressaltados, entramos em mundos e deles vertemos  sentido para o nosso. Tocamos com os dedos o que restou de reminiscências encolhidas e perdições aquiescidas. Sons, texturas, tonalidades ganham pulso na vida da imagem que à nossa frente – alhures – se precipita. Uma foto, destituída de senões, migra – assim – para “esta foto” e dela, simplesmente, para “a foto”, pois – em estado de emergência receptiva – vitaliza-se em  suspensão de nossa própria vivência-de-coisa que aquela “uma foto” suscitou, no imediato. Aí, pela visão do outro, – de invés – capturamos nosso próprio olhar introverso e, com tamanha maquinaria, fotografamo-nos:  a poesia verte-se em imagem e invade o espírito da gente e comunga com o silêncio que estronda em nossas mais íntimas anunciações.
Então, caminhamos.

quinta-feira, 10 de março de 2011

UMA ESTADA NO HORIZONTE: pequeno voo para ensaio fotográfico


Igor Rossoni





Aqueles olhos. Este olhar. E o movimento se perpetua, isento d’espaço e tempo que lhe servem de sustento.

Entre olho e olhar, asas deslocam-se em pleno desalinho perspectívico, compondo trajetória que só mesmo leve sonolência concebe comunhão. E são mesmo percursos-devaneios os que neste agora – entre noticiários e nascimentos; mortes e breves suspiros ­– olhos encontram repouso – aos poucos – no desacostumo da ordem do esperado: pássaros sobre fundo qualquer: paisagens.

Não. Não se pode dizer qu’esses arabescos emplumados sejam pássaros de fato. Não o são. A ação de capturá-los por intermédio da fixidez de feliz-instante os permitem  para além do que realmente aparentam ser. Se pássaros não são, decaem para a fertilidade de quase- serem. Assim: algo-de-asas unta-se a um tanto de voo e desta fugaz insinuação revela-se o que permanece: o pássaro sem-pássaro dentro; ave-menos que alça voos pelos entre-ares de plenitude e movimento.   

Diante dos olhos, o horizonte se permite mais de perto. Está no logo ali, agonizante à espera que não vem-e-vem e se aproxima e ronda mil volteios e pequenas diabruras; proseia por leves pensamentos visuais e pega voltar aos tempos de criança. Olhos-agora-meninos. Voo: é lampejo de lápis –  rabiscos – metáforas de horizontes. À frente – muito adiante para cá­ – o pássaro pensa.  

O olhar apruma tino. Dejeta ordem visual de coisa. E clic. Copula-se entre a aspereza de manhãs e salgadas agudezas: o mar. No desvão, borras impregnam a tela de composição e – como céu que recurva inteiro sobre si ­– adquirem consciência de perenidade e deslimites; mundo e bordas e para além delas interligando espaços reais e representacionais. Assim, o pássaro sem-pássaro dentro retoma sentido e vitalidade reais e a imagem que dispomos à frente agora não é mais-nem-menos que a de pássaros que gostaríamos de ser. De voos que apreciaríamos por demais experimentar: grandes olhos despertos e sopros de vendavais e cabelos aos desalinhos; lívida sensação de eternidade. Girassóis.

Silencie – então – os olhinhos teus. E destine viagem-bailarina. Deite olhar sobre-desde; desde dentro e – como o poeta-fotógrafo – fotografe o silêncio que emana dessas imagens entre-ausentes; o que há nelas de mais real, compensador e reconfortante: a presença quase-menina das pupilinhas; olhinhos-criança de Deus.

Estão bem ali, onde aquilos; que – apesar de tudo – insistimos em querer de gaivotas.